Uma das características mais marcantes do processo de avaliação de impacto ambiental é a importância que tem a participação do público. Tal importância decorre das questões que estão em jogo quando se trata de projetos que possam causar impactos significativos. Se as decisões quanto à exequibilidade técnica e viabilidade econômica de projetos privados são unicamente da esfera privada, o mesmo não ocorre com as decisões acerca da viabilidade ambiental, que são necessariamente públicas. Isso decorre de razões muito simples: os empreendimentos que têm o potencial de causar impactos ambientais significativos usualmente afetam, degradam ou consomem recursos ambientais que pertencem à coletividade e que dizem respeito ao bem-estar de todos. Portanto, sua apropriação não pode ser decidida no âmbito privado. A participação pública é essencial ao processo de AIA.
Informar, ouvir e decidir são tarefas relacionadas à participação pública no processo, e estão diretamente relacionadas entre si. Para tomar decisões que considerem as opiniões e os pontos de vista do público, este deve ter oportunidade de se fazer ouvir. Ele se manifesta em reação a uma proposta, que normalmente é um projeto submetido ao processo de AIA. É, portanto, necessário informar o público acerca das intenções do proponente e da natureza da decisão a ser tomada (na maioria das vezes, a emissão de uma licença ambiental e suas condicionantes).
No âmbito do processo de AIA, participação pública é definida como
[…] o envolvimento de indivíduos e grupos que são positiva ou negativamente afetados por uma intervenção proposta (por exemplo, um projeto, um programa, um plano, uma política) sujeita a um processo de decisão ou que estão interessados na mesma. (André et al., 2006)
Neste capítulo serão apresentados os fundamentos da participação pública no processo de AIA, as modalidades e os graus de envolvimento dos cidadãos, as técnicas de consulta mais usadas e um esboço dos procedimentos regulamentares de consulta. O capítulo tem dois focos: (1) a tarefa de ouvir o público no processo governamental de licenciamento e (2) a tarefa de promover o engajamento com as partes interessadas, a ser desenvolvida pelo proponente do projeto. A tarefa de informar o público foi abordada no Cap. 14 (embora o tema seja mais amplo do que o conteúdo do capítulo), ao passo que a influência da participação pública sobre as decisões é tema do Cap. 17.
O direito a um ambiente sadio para as presentes e futuras gerações é hoje amplamente reconhecido, mas essa situação é recente e, claro, o reconhecimento em lei desse direito não implica automaticamente seu reconhecimento de fato.
Durante muito tempo, no mundo ocidental, os únicos direitos reconhecidos eram os individuais, emanados do direito natural e validados à medida que os outros indivíduos os respeitavam. Os direitos sociais, de âmbito coletivo, firmaram-se ao longo do século XX, fruto de lutas sindicais e políticas, e ainda direta e nitidamente vinculados a indivíduos e a grupos detentores desses direitos, ou sujeitos de direito. A novidade, a partir dos anos 1960, é a emergência e a progressiva consolidação das gerações futuras e da própria natureza como novos sujeitos de direito, com a característica inédita de se constituírem em sujeitos para os quais não se pode exigir deveres (Silva-Sánchez, 2010). Nash (1989), ao fazer uma “história da ética ambiental” associa a ampliação da noção de direitos a uma “evolução da ética”, que, originalmente circunscrita ao “direito natural” de um grupo limitado de seres humanos, expandiu-se para os “direitos da natureza”.
Desde meados do século XX, o direito a um ambiente sadio passou a receber reconhecimento explícito em leis nacionais e em tratados internacionais. O sujeito de direito não é mais o indivíduo na sua singularidade, mas a coletividade, a nação, os grupos étnicos e regionais; trata-se de direitos de “titularidade coletiva” (Silva-Sánchez, 2010). As declarações de Estocolmo e do Rio de Janeiro, emanadas de conferências intergovernamentais promovidas pela Organização das Nações Unidas, são marcos fundamentais na explicitação do direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado como um novo direito humano.
Ademais, para efetivar o direito dos cidadãos ao ambiente de qualidade, também o direito à participação no processo decisório tem sido reconhecido. A Declaração do Rio é um dos documentos internacionais que faz menção direta à participação pública. Seu princípio 10 estabelece que:
O melhor modo de tratar as questões ambientais é com a participação de todos os cidadãos interessados, em vários níveis. No plano nacional, toda pessoa deverá ter acesso adequado à informação sobre o meio ambiente de que dispõem as autoridades públicas, incluída a informação sobre os materiais e as atividades que oferecem perigo em suas comunidades, assim como a oportunidade de participar dos processos de adoção de decisões. Os Estados deverão facilitar e fomentar a sensibilização e a participação do público, colocando a informação à disposição de todos. Deverá ser proporcionado acesso efetivo aos procedimentos judiciais e administrativos, entre os quais o ressarcimento desses danos e os recursos pertinentes.
No plano dos tratados internacionais, há um documento específico sobre participação pública, a Convenção de Aarhus, cidade dinamarquesa onde foi firmada, em 25 de junho de 1998. Essa convenção, que entrou em vigor em 30 de outubro de 2001, foi promovida pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa, tendo sido preparada e ratificada por seus integrantes, os países europeus e os da Ásia Central, pertencentes à antiga União Soviética.
A convenção está assentada sobre três bases: (i) o acesso à informação; (ii) a participação no processo decisório; (iii) o acesso à Justiça1, pois se considera que não pode haver participação genuína sem informação, nem garantia de resultados sem que esteja assegurado o direito dos cidadãos de questionarem nos tribunais as decisões tomadas. Esses três fundamentos são os mesmos que constam do princípio 10 da Declaração do Rio. A convenção é tida como um novo tipo de acordo ambiental, pois associa direitos ambientais e direitos humanos e, no fundo, trata de democracia, de transparência e de responsabilidade governamental, tendo o meio ambiente como ponto de partida.
Ainda que, formalmente, a aplicação da Convenção de Aarhus se restrinja aos países signatários, seus princípios são de alcance universal, de modo que a convenção se constitui em excelente referência para análise das questões relativas à participação pública nos processos decisórios. Ademais, quando foi firmada, diversos países (signatários ou não) já dispunham de leis próprias acerca de alguns dos três fundamentos da convenção, que acabou tendo a função de difundir internacionalmente esses princípios e essas práticas, e de fazer avançar o reconhecimento dos direitos ambientais e humanos.
O acesso à informação ambiental é abordado no Art. 4º da Convenção, que estabelece que as autoridades governamentais devem colocar à disposição do público as informações que este solicitar e “sem que o público tenha que invocar um interesse particular”. No Brasil, a Lei Federal nº 10.650, de 16 de abril de 2003, dispõe sobre o direito à informação ambiental. Tratando-se de um direito universal, não é preciso que o cidadão demonstre as razões de seu interesse ao demandar uma determinada informação de cunho ambiental. Evidentemente, deve haver exceções, em respeito à propriedade intelectual e à segurança pública, entre outros.
A participação do público nas decisões relativas a certas atividades é tema do Art. 6º da Convenção. É neste ponto que esta se relaciona fortemente com a avaliação de impacto ambiental. As disposições acerca da participação pública preconizadas nesse artigo aplicam-se quando se trata de autorizar atividades propostas “que possam ter um efeito importante sobre o meio ambiente”, e que são listadas no Anexo I da Convenção. Tal anexo nada mais é do que uma lista de atividades que deveriam ser sujeitas à participação pública antes da tomada de decisões por parte de autoridades governamentais; logo, é o equivalente de uma lista positiva de projetos a serem submetidos ao processo de AIA.
Para conhecimento do público, o texto da Convenção determina que é necessário informar qual é a atividade proposta, quais os procedimentos informativos e decisórios previstos, quais são as possibilidades de participação, qual é a autoridade a quem as pessoas devem se dirigir para obter informações e para encaminhar observações ou perguntas, e quais são os respectivos prazos. Adicionalmente, o Art. 6º estipula que o público pode consultar, de forma gratuita, todas as informações de interesse para a tomada de decisões, tendo como mínimo:
uma descrição do local e das características físicas e técnicas da atividade proposta;
uma descrição dos efeitos importantes da atividade proposta sobre o meio ambiente;
uma descrição das medidas previstas para prevenir ou para reduzir esses efeitos, em particular as emissões;
um resumo não técnico dos itens precedentes;
uma síntese das principais soluções e alternativas estudadas pelo proponente.
Evidentemente, não é coincidência que essa lista reflita o conteúdo mínimo de um estudo de impacto ambiental.
No que se refere ao acesso à Justiça, o Art. 9º da convenção advoga que:
Cada Parte velará, no âmbito de sua legislação nacional, para que toda pessoa que estime que sua solicitação de informações apresentada em consonância com o artigo 4º tenha sido ignorada, rechaçada abusivamente, em todo ou em parte, ou insuficientemente levada em conta ou que não tenha sido tratada conforme as disposições do presente artigo, tenha a possibilidade de apresentar um recurso perante um órgão judicial ou ante outro órgão independente ou imparcial estabelecido pela lei.
O direito de acesso à Justiça, em prazos e custos razoáveis, é essencial para que se façam valer os outros dois, o direito à informação ambiental e o direito à participação no processo decisório. O Brasil é bastante avançado nessa área, haja vista que desde 1985 o acesso à Justiça para fins de proteção ambiental é assegurado aos cidadãos e às associações civis, sem que seja necessário demonstrar um interesse direto no tema ou que direitos individuais possam ser afetados. A Lei Federal nº 7.347, de 24 de julho de 1985, conhecida como Lei dos Interesses Difusos, possibilitou uma grande ampliação das possibilidades de efetiva aplicação da legislação ambiental, processo que se consolidou com a Constituição Federal de 1988 e a nova função do Ministério Público, ampliada para a proteção ambiental e o direito dos consumidores.
Entre juristas, há debate acerca de noções como interesse público, interesse coletivo, interesse social, interesse supraindividual e interesse difuso (ou direitos difusos). Mancuso (1997, p. 73) defende que “o interesse difuso concerne a um universo maior do que o interesse coletivo”. Na mesma linha, Milaré (1990, p. 10) conceitua interesses difusos como “os comuns a um grupo indeterminado ou indeterminável de pessoas”.
Adiante, neste capítulo, ao se estudar procedimentos de participação pública adotados em algumas jurisdições, poder-se-á ver a aplicação prática dos princípios da Convenção de Aarhus.
A convenção tem também outros dispositivos, relativos à participação do público durante a elaboração de propostas de normas administrativas visando à proteção ambiental, nas discussões de planos, programas e políticas, e sobre a coleta e difusão de informações sobre o estado do meio ambiente, mas esses dispositivos não serão tratados aqui.
Para Webler e Renn (1995), a participação pública pode ser justificada com base em dois tipos de argumentos. Fundamentalmente, a participação se justificaria por motivos éticos, como um dos valores centrais da democracia; a participação seria necessária para fazer valer princípios como a equidade e a justiça. Porém, em contraposição a uma argumentação ética e normativa, a participação também se justificaria por razões puramente funcionais — nas sociedades contemporâneas, a participação daria mais legitimidade às decisões, tornaria mais eficiente o processo decisório e facilitaria a implementação das decisões tomadas.
Dar legitimidade ao processo de tomada de decisão é algo desejável nas sociedades democráticas, em que o livre debate e a inclusão de novos temas na arena pública são valores fundamentais. Trata-se de uma ideia de democracia ampliada, como propõe Habermas, ou seja, a democracia vinculada a um processo societário de discussão e ao uso público da razão — não uma razão instrumental ou subjetiva, mas uma razão comunicativa.
Habermas, em sua teoria da ação comunicativa, concebe um novo conceito de razão – a razão comunicativa – constituída socialmente no processo de interação dialógica entre os sujeitos de uma dada situação; uma razão intersubjetiva, portanto, tornada possível pelo medium lingüístico.
(Silva-Sánchez, 2003, p. 71)
Para o filósofo, a sociedade civil tem capacidade de dar ressonância a temas próprios dos domínios da vida privada dos cidadãos, transformando-os em questões de interesse público, tornando-se, assim, uma mediadora entre a vida privada e o sistema político.
As estruturas comunicacionais da esfera pública estão muito ligadas aos domínios da vida privada, fazendo que […] a sociedade civil, possua uma sensibilidade maior para os novos problemas, conseguindo captá-los e identificá-los antes do centro da política. Pode-se comprovar isso através dos grandes temas surgidos nas últimas décadas — […] pensemos nas ameaças ecológicas que colocam em risco o equilíbrio da natureza […]. Não é o aparelho de Estado […] que toma a iniciativa de levantar esses problemas.2 (Habermas, 1997).
Quando se fala em consulta, participação ou envolvimento público no processo decisório em matéria ambiental, naturalmente surge a questão: de que tipo de participação se trata? Até onde iria o poder popular? O governo abdicaria de seu poder decisório em favor de um plebiscito ou de outra forma de decisão soberana?
Não se trata disso, ou pelo menos muito raramente se trata disso. Na maioria das vezes, a participação pública limita-se ao direito de ser informado e de exprimir seus pontos de vista, com a expectativa de que isso influencie a decisão a ser tomada pela autoridade competente. Os procedimentos de participação pública, em realidade, visam colocar alguma ordem nas discussões e estabelecer canais formais de expressão da vontade dos cidadãos. A Fig. 16.1 expõe um diagrama com as diversas formas de manifestação de opinião em uma democracia. À parte os processos tradicionais de participação em uma democracia representativa, mediante eleições, plebiscitos ou referendos, um entendimento amplo do que é a participação pública a define como qualquer forma de expressão de pontos de vista dos cidadãos. Tal expressão pode dar-se de forma autônoma, por meio de manifestações públicas, passeatas, atos públicos, abaixo-assinados, campanhas de mídia e outras ações, ou na forma de manifestação sob convite, na qual as opiniões dos cidadãos são expostas, registradas e debatidas segundo certas regras previamente estabelecidas.
A ausência de procedimentos formais de participação canaliza todas as manifestações para os meios espontâneos e autônomos de expressão e de pressão da opinião pública, incluindo os lobbies. A falta de mecanismos de consulta pública também torna menos transparentes as decisões e amplia o poder de influência de grupos de interesse, sejam interesses econômicos, sejam interesses políticos de curto prazo, e que podem influenciar a aprovação de um projeto que tenha o potencial de causar impacto ambiental significativo. Note-se que a organização da participação pública por meio de procedimentos estabelecidos em lei não significa uma instrumentalização ou um enquadramento do público, pois continuam abertas todas as possibilidades de expressão compatíveis com a democracia. A realização de uma audiência pública visando ao licenciamento ambiental de um novo projeto não impede que os mesmos cidadãos que nela estiveram também se manifestem, contra ou favoravelmente, por outros meios; ao contrário, a audiência (um dentre vários modos de participação pública) pode favorecer o envolvimento de pessoas que talvez não se expressassem em outros fóruns. A consulta pública não tolhe a liberdade nem substitui o direito de expressão dos cidadãos, apenas o complementa.
Fig. 16.1 Tipologia das formas de expressão do cidadão em uma democracia
Fonte: modificado de Thibault (1991) e Vincent (1994).
Assim, usando a tipologia da Fig. 16.1, a participação pública no processo decisório em matéria de meio ambiente é tratada como uma participação “sob convite”, na qual os cidadãos se manifestam no momento apropriado e com base em informações previamente disseminadas, não obstante seu direito de se expressar fora do procedimento formal de participação pública, garantido em qualquer regime democrático. Os tratados internacionais e as leis nacionais impõem às autoridades governamentais a obrigação de promover uma consulta pública dentro do processo de AIA, cabendo a cada jurisdição definir seus mecanismos e regras.
Estabelecidos tais princípios gerais para a consulta pública, não se pode deixar de lembrar que, evidentemente, as tradições democráticas e a propensão ao diálogo variam imensamente de acordo com a cultura política de cada país e de cada grupo social. Também as organizações empresariais têm uma ampla variedade de maneiras de encarar a participação pública nas decisões relativas a seus investimentos e muitas vezes representantes de empresas que nunca se confrontaram com uma consulta pública têm grande dificuldade de entender as razões subjacentes ao processo.
A participação do público é um tema muito estudado nas disciplinas de planejamento e nas ciências sociais. A avaliação de impacto ambiental que também é uma forma de planejamento, ensejou uma ampliação da participação pública, que passou a abarcar também certas decisões privadas. Então, de que grau de participação se trata? Alguns autores propõem uma tipologia de graus de participação pública nos processos decisórios. Uma das mais conhecidas é a escala de Arnstein (1969), que pode ser vista na Fig. 16.2.
Fig. 16.2 Escala de graus de participação pública nas decisões
Fonte: Arnstein, 1969.
Para Arnstein, há simulacros de participação apresentados com esse nome, mas que, na verdade, constituem uma manipulação da opinião pública, às vezes sob os nomes de educação ou informação. Também os graus 3 e 4, denominados informação e consulta, não constituiriam uma verdadeira participação, haja vista que o público não tem nenhum controle sobre a decisão tomada. Mesmo a conciliação constituiria nada mais que uma deferência, um sinal de polidez do tomador de decisão, que convida o público para discutir, mas se reserva o poder de decidir. A conciliação seria também uma maneira de atender a formalidades legais (tokenism) sem permitir que isso questione os fundamentos da decisão a ser tomada. Apenas os graus superiores constituiriam a verdadeira participação. Para a autora, na parceria existiria uma verdadeira negociação, enquanto na delegação de poder as decisões seriam tomadas pelos representantes do público. Para Arnstein, a participação é a partilha do poder.
Quando Arnstein publicou esse trabalho, ainda não havia sido iniciada nos EUA a consulta pública dentro do processo de AIA, e a autora refere-se fundamentalmente a processos decisórios acerca de outros assuntos de interesse público, como o planejamento territorial e as decisões em matéria de educação, saúde, habitação e direitos civis. Parenteau (1988) aponta o uso da consulta pública no Canadá como forma de participação na criação e no planejamento de parques nacionais e na elaboração de planos de desenvolvimento regional, além da AIA.
Eidsvik (1978), ao tratar da participação pública no planejamento de parques nacionais no Canadá, adota uma escala pragmática, mostrada na Fig. 16.3. O planejamento de parques e de outras unidades de conservação é também um campo em que a participação pública pode trazer benefícios, derivados do maior engajamento daqueles que tomam parte do processo participativo — e de um sentimento de que a decisão também lhes pertence —, ao passo que a falta de participação na escolha e implantação de novas unidades de conservação foi muitas vezes criticada por não levar em conta os interesses das populações tradicionais (Diegues, 1994).
Roberts (1995) adota uma escala com sete estágios de participação, desde a persuasão até a “autodeterminação”, sendo a consulta colocada justamente no meio do caminho, enquanto o “planejamento conjunto” e a “decisão partilhada” se situam em um degrau imediatamente superior. O autor prefere designar a relação com o público no processo de AIA com um termo abrangente e mais neutro — envolvimento público —, que se subdivide em consulta e participação. Consulta inclui educação, partilha de informação e negociação, com o objetivo de tomar melhores decisões. Já participação significa trazer o público para dentro do processo decisório. Roberts reconhece que a principal forma de envolvimento público tem sido a consulta e aponta que há razões pragmáticas para que uma organização busque envolver o público em seu processo decisório, visto que o envolvimento permitiria evitar problemas, impedir confrontos e até mesmo obter o apoio e a colaboração dos envolvidos.
Fig. 16.3 Uma tipologia de graus de participação pública no processo decisório
Fonte: Eidsvik (1978).
Seus cinco níveis de participação também incluem a “não participação” de Arnstein e aqueles níveis superiores de participação em que a decisão é tomada pelo público. De acordo com essa tipologia, a participação pública no processo de AIA normalmente se dá no nível da consulta. É verdade que, nesses casos, a autoridade pode tomar uma decisão contrária à vontade da maioria, mas também é verdade que a participação maciça e intensa do público interessado pode inviabilizar politicamente uma decisão contrária a seus interesses. Por exemplo, no início dos anos 1990, uma empresa estatal de São Paulo, a Companhia Energética de São Paulo (Cesp), apresentou um projeto de construção de uma usina termelétrica, que teria como combustível o resíduo viscoso de uma refinaria de petróleo (denominado “óleo ultraviscoso”), uma mistura de hidrocarbonetos muito pesados, cuja queima seria potencialmente muito poluente. Embora os estudos ambientais tivessem concluído que seriam pequenos e pouco significativos os efeitos sobre a qualidade do ar, houve forte oposição popular, o que levou a empresa a mudar a localização do projeto, de Paulínia (onde se situa a refinaria) para Mogi Mirim, localizada a algumas dezenas de quilômetros. Nesse local, a população também se mobilizou contra o projeto, apesar das iniciativas da empresa de divulgar as supostas vantagens do empreendimento, até mesmo levando uma comissão de vereadores para visitar usina similar no Japão. A mobilização foi tal que a Câmara Municipal votou uma lei proibindo empreendimentos desse tipo em seu território. Como a Constituição brasileira dá aos municípios a prerrogativa de controlar o uso do solo, a decisão municipal inviabilizou a implantação da usina também em Mogi Mirim. Em vez de continuar buscando locais para construir a usina, o governador do Estado, às vésperas da Conferência do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, ordenou o arquivamento do projeto (Balby et al., 1995).
Da mesma forma, o projeto de construção de um aterro de resíduos industriais no município de Piracicaba, também no interior do Estado de São Paulo, não foi adiante por decisão do empreendedor. Apesar de o projeto ter recebido a licença prévia, a discussão do EIA e sua aprovação foram bem difíceis e conflituosas (Sánchez et al., 1996), o que levou o empreendedor, que não atuava nesse ramo de negócios, a investir em outros setores. Outros empreendedores também desistiram de seus projetos quando encontraram oposição organizada por parte de segmentos do público, às vezes conjugada por ações na Justiça, em diversas demonstrações práticas da eficácia dos três pilares da Convenção de Aarhus — a informação, a consulta e o acesso à Justiça.
Na Austrália, uma ampla controvérsia pública emergiu no início da década de 1980 devido ao projeto de construção de uma barragem, no rio Franklin, no Estado da Tasmânia. A polêmica levou o governo estadual a organizar um plebiscito, perguntando aos cidadãos qual das duas opções de barragem seria a preferida, mas 45% dos votos foram anulados por cidadãos que escreveram no dams nos boletins de voto. O projeto se transformou em objeto de disputa entre sucessivos governos estaduais e federais, com os últimos pretendendo declarar o local como área protegida, e a questão acabou resolvida pela Suprema Corte, inviabilizando legalmente o projeto. “A campanha para salvar o Franklin permanece como a mais famosa batalha ambiental na história de nossa nação” (Toyne, 1994, p. 45). A área forma hoje o Franklin-Gordon Wild Rivers National Park.
Na Argentina, a mobilização pública contrária a uma nova mina de ouro que seria aberta a poucos quilômetros de Esquel, cidade turística voltada para a prática de esportes de neve localizada no sul do país, na Cordilheira dos Andes, inviabilizou o projeto. Pressionada pelos eleitores, por ONGs, pela mídia e por passeatas contrárias, a municipalidade local convocou um plebiscito, em março de 2003, no qual a população votou majoritariamente contra o projeto; em 2007 a empresa anunciou sua desistência do projeto. Se alguém dedicar-se a colecionar casos ou eventos de projetos recusados devido a seu impacto ambiental ou devido à oposição popular, provavelmente ficará surpreso com sua quantidade. A situação se repete em muitos países.
Outra escala de participação pública – que os autores denominam espectro, sugerindo que não são níveis sucessivos, mas uma transição contínua entre categorias – é mostrada na Fig. 16.4. O espectro foi elaborado pela International Association for Public Participation (IA2P) e resultou de discussões de seus associados. Assim, não se trata da proposição de um determinado autor, mas de determinado consenso ou entendimento partilhado entre especialistas. O espectro traz categorias de grande utilidade para avaliação de impacto ambiental, pois abre mais possibilidades que as escalas anteriores. A participação pode se dar nos níveis de consulta, envolvimento e colaboração. Sua aplicação é particularmente apropriada para descrever as formas de envolvimento do público empregadas pelos proponentes de projeto, ao passo que a consulta oficial realizada por órgãos governamentais continua a ser enquadrada na categoria “consulta”. Observa-se também que, nesse modelo, até mesmo o início do espectro – informar – tem objetivo de facilitar a participação; a descrição se adapta bem à função do Rima. No caso de Esquel, porém (sobre o qual há abundante informação na internet), o espectro parece ser insuficiente, pois mesmo o nível de “informação” não foi atingido pela empresa (Fernández, 2006), sendo mais verossímil enquadrar o caso em um dos dois primeiros degraus da escala de Arnstein (Fig. 16.2).
Fig. 16.4 Espectro de participação pública da Associação Internacional de Participação Pública
Fonte: International Association for Public Participation (2007).
A consulta pública tem várias funções e serve a múltiplos objetivos no processo de AIA. A literatura sobre o assunto arrola vários desses objetivos. Entre outros autores, Ortolano (1997, p. 403) destaca os seguintes:
aprimorar decisões com potencial de causar impactos em comunidades ou no meio ambiente;
possibilitar aos cidadãos a oportunidade de expressar-se e de serem ouvidos;
possibilitar aos cidadãos a oportunidade de influenciar os resultados;
avaliar a aceitação pública de um projeto e acrescentar medidas mitigadoras;
desarmar a oposição da comunidade ao projeto;
legitimar o processo de decisão;
atender requisitos legais de participação pública;
desenvolver mecanismos de comunicação em duas vias entre o proponente do projeto e os cidadãos; identificar as preocupações e os valores do público; fornecer aos cidadãos informações sobre o projeto; informar os responsáveis pela decisão sobre alternativas e impacto do projeto.
Os benefícios da consulta pública também são frequentemente invocados. World Bank (1999, p. 2) aponta os seguintes:
a redução do número de conflitos e dos prazos de aprovação se traduz em maior lucratividade para os investidores;
os governos melhoram os processos decisórios e demonstram maior transparência e responsabilidade (accountability);
órgãos públicos e ONGs ganham credibilidade e melhor compreensão de sua missão;
o público afetado pode influenciar o projeto e reduzir impactos adversos, maximizar benefícios e assegurar que receba compensação apropriada;
há maiores possibilidades de que grupos vulneráveis recebam atenção especial, que questões de equidade sejam levadas em conta e que as necessidades dos pobres tenham prioridade;
os planos de gestão ambiental são mais efetivos.
Já o grupo da International Association for Impact Assessment (IAIA), que desenvolveu princípios de boa prática de participação pública, apresenta os seguintes objetivos (selecionados a partir de André et al., 2006):
promover a justiça, a equidade e a colaboração;
informar e educar as partes interessadas (incluindo o proponente, o público, o(s) tomador(es) de decisão e o regulador) acerca da ação planejada e das suas consequências;
obter reações do público sobre a ação planejada, incluindo formas de reduzir os seus impactos negativos, aumentar os seus resultados positivos ou compensar impactos que não possam ser mitigados;
contribuir para melhorar a análise de propostas, levando a um desenvolvimento mais criativo, intervenções mais sustentáveis e, consequentemente, maior aceitação e apoio do público, comparativamente ao que sucederia noutras circunstâncias;
contribuir para a aprendizagem mútua entre as partes interessadas.
Em teoria, todos teriam a ganhar com a vinculação da consulta pública ao processo de AIA, mas, na prática, observa-se muita resistência à realização de consultas amplas e um receio de que, ao invés de reduzir o tempo de análise, a consulta o prolongue, ou ainda, sob o ponto de vista do empreendedor, que uma decisão “técnica” sobre a viabilidade ambiental do projeto torne-se “política” quando há um debate público (no Cap. 17 será abordada a tensão entre a dimensão técnica e a dimensão política das decisões em matéria ambiental). Por outro lado, é também fato que muitos investidores privados têm receio de alocar recursos em projetos que não tenham boa aceitação pública. A expressão “licença social para operar” é usada com frequência para designar a aceitação pública de um projeto, independentemente da existência de autorizações ou licenças governamentais. Ademais, em projetos de cooperação internacional, os países doadores podem condicionar a liberação de recursos não só à preparação de um EIA, como também a uma consulta pública, enquanto os bancos de desenvolvimento obrigam os tomadores de empréstimo a consultar as populações afetadas e outros grupos de interesse.
Serão limitadas as vantagens da consulta pública se ela ocorrer somente após a conclusão do EIA. Quando o empreendedor ou órgão governamental enxergam a consulta tão somente como obrigação legal ou formalidade administrativa, é claro que seus benefícios serão inexistentes ou muito reduzidos. Nesses casos, a consulta, aos olhos do público, parecerá “um ritual vazio de participação” (Arnstein, 1969, p. 216). Muitos analistas e observadores, insatisfeitos com o grau de participação alcançado, passaram a adjetivar as recomendações de consulta pública, e certos guias de boas práticas e documentos oficiais clamam por participação efetiva, ou por consulta significativa ou real.
Idealmente, a consulta pública (efetiva ou real) ocorreria em diferentes fases do processo de AIA, com objetivos próprios em cada momento. O Quadro 16.1 aponta os principais objetivos da consulta, segundo as fases do processo. A objetivos diferentes devem se associar técnicas e procedimentos apropriados de consulta. Assim, se na fase decisória uma audiência pública pode representar uma ferramenta adequada, na fase de acompanhamento grupos de supervisão ou comitês de cidadãos podem revelar-se os mecanismos mais viáveis para atingir os objetivos de participação. É claro que o momento crucial é o da tomada de decisão, mas é importante compreender que a influência real que o público poderá exercer aí dependerá muito de seu envolvimento nas etapas anteriores. Do mesmo modo, o efetivo cumprimento das promessas contidas no EIA e dos compromissos assumidos por meio da licença ambiental só pode ser garantido se também o público estiver envolvido nas etapas pós-aprovação.
Quadro 16.1 Objetivos de consulta pública durante o processo de AIA
ETAPA DO PROCESSO |
OBJETIVOS DE CONSULTA |
Apresentação da proposta |
Divulgar intenções do proponente e objetivos do projeto |
Triagem |
Permitir eventuais questionamentos sobre a classificação do projeto em termos de impacto potencial e dos estudos ambientais necessários |
Determinação do escopo do EIA |
Identificar grupos interessados Identificar e mapear preocupações do público Incluir ou excluir questões do escopo do EIA Aprimorar os termos de referência Considerar alternativas ao projeto |
Preparação do EIA |
Identificar e caracterizar impactos Disseminar informação sobre métodos de estudo e seus resultados Incluir no diagnóstico ambiental o conhecimento que a população local tem do meio ambiente e aproveitá-lo na análise dos impactos Identificar medidas mitigadoras e compensatórias |
Análise técnica |
Conhecer os pontos de vista do público para eventual consideração e incorporação ao parecer de análise |
Decisão |
Levar em conta as opiniões dos interessados Considerar a distribuição social dos ônus e dos benefícios do projeto como um dos elementos da decisão |
Acompanhamento |
Contribuir para verificar o cumprimento satisfatório de compromissos e condicionantes Possibilitar que reclamações possam ser formuladas e atendidas |
Assim, os objetivos instrumentais da participação pública nas etapas pré-decisão inserem-se na lógica de que é preciso fortalecer todo o processo de AIA para que melhores decisões sejam tomadas. Contudo, não se pode perder de vista que a consulta pública pode questionar o próprio projeto, seus fundamentos e justificativas. Em algumas ocasiões, a melhor decisão pode ser justamente a recusa.
A maioria dos países tem requisitos formais de consulta pública no processo de AIA. Também há a modalidade de consulta direta, voluntária, do empreendedor, sem intermediação governamental. No entanto, quando se trata de obtenção de autorização ou licença, a consulta voluntária não substitui a consulta pública oficial, embora possa complementá-la. Para que possa atingir resultados, a consulta pública necessita de regras claras (o procedimento de consulta) e de acesso à informação (cujas regras devem ser definidas em leis e regulamentos). Uma atitude aberta ao diálogo por parte do empreendedor (e do agente governamental) só pode contribuir, pois leis, regulamentos e procedimento podem funcionar somente na medida em que haja engajamento das partes.
Há diferentes maneiras de se estruturar a consulta pública e podem ser empregadas diferentes ferramentas para conduzir o processo. Há formas mais apropriadas para determinadas fases do processo de AIA – por exemplo, para estabelecer os termos de referência, reuniões de pequenos grupos ou oficinas de trabalho, ao passo que para discutir um projeto e seus impactos após a conclusão do EIA, uma ou mais audiências públicas podem ser apropriadas. Um dos formatos mais conhecidos é justamente a audiência pública. As public hearings anglo-saxônicas estão profundamente embrenhadas na cultura política desses países e em muito precedem a avaliação de impacto ambiental3, ao contrário de países como o Brasil, onde foi a legislação ambiental que inaugurou a prática da realização de audiências públicas, hoje bastante disseminadas e realizadas para uma série de finalidades. As public hearings foram logo associadas ao processo estabelecido pela NEPA, nos EUA, e são empregadas em vários países como parte indissociável do processo de AIA. Por exemplo, a ampla consulta conhecida como Berger Inquiry, realizada no Canadá entre 1974 e 1977, acerca do traçado preferencial de um oleoduto no extremo norte do país, é apontada como “um dos mais significativos eventos no desenvolvimento do processo de avaliação de impacto ambiental no Canadá” (Sewell, 1981, p. 77), tendo contribuído decisivamente para estabelecer a consulta pública como parte indissociável da AIA.
As audiências públicas encontram mais ampla aplicação para as fases de scoping e de tomada de decisão. As formalidades, a dinâmica e a duração das audiências variam grandemente, mas esse tipo de evento participativo tem características comuns em muitos locais. Audiências públicas ambientais são eventos formais, convocados e conduzidos por um ente governamental, cuja dinâmica segue regras previamente estabelecidas, e que tem como finalidade realizar um debate público — aberto a todos os cidadãos — sobre um projeto e seus impactos.
Usualmente, em uma audiência pública que é parte do processo de AIA, há uma exposição sobre o projeto e seus impactos, seguida de perguntas do público, esclarecimentos do proponente, consultores e agentes governamentais, e debates ou questionamentos. Os objetivos das audiências públicas se sobrepõem aos objetivos gerais da consulta pública e podem ser resumidos em:
fornecer aos cidadãos informações sobre o projeto;
dar aos cidadãos a oportunidade de se expressarem, de serem ouvidos e de influenciarem nos resultados;
identificar as preocupações e os valores do público;
avaliar a aceitação pública de um projeto com vistas a aprimorá-lo;
identificar a necessidade de medidas mitigadoras ou compensatórias;
legitimar o processo de decisão;
aprimorar as decisões;
atender requisitos legais de participação pública.
Porém, audiências não são a única técnica para atender a esses objetivos. Aliás, elas têm muitas limitações, embora sejam valiosos instrumentos para a democratização do processo decisório. Parenteau (1988), ao estudar a participação pública nos processos decisórios ambientais no Canadá, identificou diversas deficiências ou mesmo limitações estruturais desses processos, fundamentados em audiências públicas. Para ele, a participação do público é limitada por alguns “filtros”, fatores que dificultam ou mesmo impossibilitam um envolvimento pleno.
Para participar efetivamente de uma audiência, há muitas dificuldades de ordem prática, a começar pelo tempo que os cidadãos podem dedicar. Ainda que realizadas à noite, se alguém realmente quer engajar-se nos debates, não basta somente comparecer e ouvir as exposições; é preciso tomar conhecimento do EIA, lê-lo atentamente. Um EIA ou Rima mal escrito só acentua essa dificuldade. Em segundo lugar, há a dificuldade de acesso intelectual ao EIA ou ao Rima. Não somente se trata de informação técnica a ser decodificada, mas de dificuldades ainda mais básicas de compreensão de textos da parte de pessoas de baixa escolaridade ou de analfabetos funcionais.
Tais limitações não são características de países subdesenvolvidos, embora nestes possam ser exacerbadas. No Canadá, país que tem um dos mais altos índices de desenvolvimento humano, Parenteau (1988, p. 59) constata que a participação em audiências públicas é muito centrada em “especialistas em audiências públicas”, que estão presentes em várias delas e que fazem frequente uso da palavra. Militantes, advogados e técnicos reencontram-se com assiduidade e fazem intervenções fundadas no conhecimento e na competência. Assim, o “objetivo inicial [das audiências públicas], que consistia em produzir um debate público o mais amplo e diversificado possível, com envolvimento das pessoas diretamente afetadas, tende a ser seriamente diminuído”. Nas consultas públicas promovidas pelo Banco Mundial acerca de projetos de significativo impacto potencial, o próprio banco identifica aspectos que precisam ser melhorados, entre os quais a participação de minorias e de grupos em desvantagem e a inclusão de todos os grupos que possam ter algum interesse em relação ao projeto (World Bank, 1999, p. 1).
Não obstante, são as próprias limitações do público geral que justificam o papel de público esclarecido que assumem muitas ONGs. Não fosse pela atuação de algumas associações da sociedade civil, como ONGs ambientalistas, entidades profissionais e associações de moradores, entre outras, o debate público seria empobrecido ou sujeito à dicotomia há muito ultrapassada e encapsulada no mote “economia x ecologia” ou “desenvolvimento x conservação”.
Outra crítica frequente às audiências públicas é que elas tendem a favorecer o confronto e não a negociação. Em muitos casos há um inevitável clima de enfrentamento não cooperativo que mais se assemelha a um embate nos tribunais do que a uma situação de consulta e diálogo. Claro que uma audiência pode ser muito diferente de outra. O nível de participação pode ser muito pequeno ou muito grande; o projeto pode ser relativamente consensual e esperado pela comunidade ou pode ser altamente polêmico; a atitude do proponente e do consultor pode ser de arrogância ou de humildade; o público pode ter maior ou menor grau de organização, em virtude de lutas passadas; a comunidade local pode estar dividida devido às expectativas positivas ou negativas em relação às consequências do projeto ou porque alguns esperam beneficiar-se do mesmo, enquanto outros serão afetados negativamente.
No Brasil, as audiências públicas ambientais representam um importante espaço de debate e participação, mas se deparam com muitas limitações similares às das audiências dos países anglo-saxônicos. No Estado de São Paulo, a primeira audiência foi realizada em janeiro de 1988. Ferrer (1998) estudou quarenta audiências públicas realizadas no Estado entre 1988 e 1996. Em alguns casos, a participação foi baixa na audiência, como em um projeto de aterro de resíduos industriais de Piracicaba (conforme a seção 16.2); apenas sessenta pessoas compareceram, mas somente quando o empreendimento chegou ao plenário do Consema as entidades da região mobilizaram-se para tentar barrá-lo. Por outro lado, houve séries de audiências sobre determinados empreendimentos que reuniram mais de 2 mil participantes. Na análise da autora, as audiências contribuem para o aprimoramento do processo de licenciamento ambiental e, principalmente, constituem fóruns em que os conflitos são explicitados, o que contribui para sua resolução. No entanto, “seu formato é inadequado”, pois impede que sejam prestados esclarecimentos efetivos, não propiciam informações isentas, o tempo de réplica é pequeno (embora a duração das audiências possa ser longa, estendendo-se além do “limite de assimilação das pessoas”), possibilitam posicionamentos e “informações enganosas” sem que seus locutores possam ser responsabilizados, entre outras deficiências.
Em síntese, algumas deficiências das audiências públicas ambientais são:
têm uma dinâmica que favorece um clima de confronto;
representam um jogo de soma nula, pois, devido à confrontação, raramente se consegue convergir para algum ponto em comum;
dão margem a manipulação por aqueles que têm mais poder econômico ou maior capacidade de mobilização;
ocorrem muito tarde no processo de AIA, quando muitas decisões importantes sobre o projeto já foram tomadas4;
a maior parte do público dispõe de pouquíssima informação sobre o projeto e seus impactos; os processos de informação pública que deveriam preceder a audiência são deficientes;
grande parte do público não tem condições de decodificar e compreender a informação de caráter técnico e científico colocada à sua disposição;
os tomadores de decisão raramente estão presentes (somente seus assessores);
há um “déficit comunicativo implícito”, uma vez que os “técnicos se colocam em um degrau superior ao dos cidadãos” (Webler e Renn, 1990, p. 24);
uso frequente de argumentos de cunho técnico-científico em um contexto político no qual a verdade não pode ser verificada (Parenteau, 1988);
surgimento de uma categoria de “especialistas em audiências públicas” que falam em nome do público (Parenteau, 1988);
uso frequente de argumentos jurídicos e de ameaças de ações em Justiça, tentando invalidar ou tornar ilegítimas decisões tomadas anteriormente ou a ser tomadas.
Outras técnicas para facilitar o envolvimento, a consulta ou o diálogo com os interessados podem também ser empregadas no processo de AIA. As mais simples são as reuniões públicas, eventos informais promovidos pelo proponente, aos quais os interessados são convidados a comparecer para conhecer o projeto proposto e debater sobre suas consequências. Reuniões públicas podem ser realizadas em diversas fases do processo de AIA, destacando-se: (i) triagem; (ii) determinação do escopo; (iii) preparação do EIA; (iv) análise técnica; e (v) decisão.
Para o sucesso de uma tal reunião — com grande afluência de interessados e presença de líderes ou de pessoas influentes na comunidade — é essencial que seja previamente realizado um intenso trabalho de divulgação. A cooperação de instituições locais como igrejas, escolas ou associações comunitárias é de grande valia para divulgar uma reunião pública. A escolha de um local neutro e já conhecido da população, como um salão paroquial, uma escola ou ginásio municipal, facilita a participação.
Reuniões em grandes grupos, assim como audiências públicas, não têm um formato muito bom nem uma dinâmica adequada para informar os interessados sobre o projeto e sobre as intenções de seu proponente. O ideal é que a informação tenha sido disseminada antecipadamente, por intermédio de diferentes meios (impressos, audiovisuais etc.)5.
Em uma reunião pública, o proponente do projeto e seu consultor podem fazer uma exposição sobre o tema, seguida de perguntas e debates, em uma sequência parecida com a de uma audiência pública. A reunião pode ser muito útil para ouvir as preocupações da comunidade e conhecer suas expectativas em relação ao projeto. Por exemplo, em uma reunião pública promovida por uma empresa de mineração no Estado do Rio de Janeiro, acerca de um novo projeto que previa a abertura de mina de uma substância não metálica de uso industrial, diversos moradores vizinhos manifestaram suas inquietações em relação ao suprimento de água, já que no bairro mais próximo, apesar de situado em zona urbana, as casas eram abastecidas por cacimbas individuais e não por rede pública. Como o estudo de impacto ambiental ainda estava em andamento, os consultores e o proponente decidiram que seria conveniente convidar algum especialista vinculado a uma universidade pública para realizar um estudo hidrogeológico independente do EIA. Embora suas conclusões fossem utilizadas no EIA, esse estudo seria integralmente anexado, para evitar qualquer suspeita de manipulação de dados. É interessante observar que os termos de referência desse EIA (que no Rio de Janeiro eram chamados de Instruções Técnicas) haviam dado pouca importância às águas subterrâneas, porque a análise preliminar indicara que algum impacto sobre a disponibilidade de água subterrânea seria de baixa probabilidade de ocorrência. Ao ficar evidente a preocupação do público com o tema, a programação do EIA foi revista.
Reuniões públicas também podem ocorrer em clima tenso e altamente emocional, a exemplo das audiências públicas, e isso se deve ao fato de que ambas têm dinâmica parecida, ainda que a primeira seja menos formal. Uma alternativa é a realização de reuniões com pequenos grupos, oficinas ou reuniões de trabalho, que não são abertas à presença de todos, mas onde a participação se faz sob convite. Lideranças locais e formadores de opinião podem ser convidados para sessões de informação, de discussão ou mesmo reuniões visando à negociação de itens como modificações de projeto ou medidas compensatórias. Embora a autoridade pública sempre resguarde o direito de decidir, seus representantes podem também estar presentes e, em certos casos, atuar como mediadores informais de algum conflito real ou latente. Esse formato de consulta pode ser usado nas mesmas etapas do processo de AIA que as reuniões públicas.
Se o objetivo for ampliar a consulta e atingir o maior número de interessados, a realização de uma ou mais audiências ou o convite para participar de reuniões talvez não seja a melhor estratégia, ou não seja suficiente. Pode ser mais eficaz que técnicos e consultores se desloquem pela região e conversem diretamente com lideranças e cidadãos comuns. Há de notar-se, entretanto, que tal procedimento pode não estar de acordo com as formalidades legalmente requeridas, situação em que seria necessário também realizar audiências.
A realização de pesquisas de opinião conhecidas como surveys é um método de levantar opiniões, preocupações e pontos de vista que talvez não fossem exprimidos em fóruns como audiências ou reuniões públicas. Essas pesquisas podem ser conduzidas com base em questionários que contenham uma série de perguntas preestabelecidas, ou na forma de entrevistas abertas, nas quais o pesquisador chega com alguns temas previamente definidos, mas deixa amplo espaço para que o entrevistado introduza outros assuntos de seu interesse. Essa técnica pode ser útil para a seleção das questões relevantes e para a preparação do EIA.
Diversas ferramentas foram desenvolvidas para estimular a participação pública na formulação e avaliação de projetos de desenvolvimento, ultrapassando a noção de consulta e entrando em graus superiores de participação, como a “parceria” de Arnstein (1969). Em vez da participação ser uma resposta (ou uma reação) a um projeto já definido, métodos participativos são usados para gerar, conceber ou delinear projetos da base para o topo. No método conhecido como “Avaliação Rural Participativa” (Participatory Rural Appraisal - PRA) ou “Avaliação Rural Rápida” (Rapid Rural Appraisal – RRA), as populações locais coletam e analisam os próprios dados, ajudadas por facilitadores que organizam discussões em grupos, auxiliam a desenvolver critérios de classificação e ordenamento de prioridade, entre outras tarefas. Inúmeros outros métodos de planejamento participativo podem ser adaptados ou usados parcialmente em avaliação de impacto ambiental, quase sempre em uma perspectiva que ultrapassa a simples consulta pública, o que já está além do escopo deste capítulo6.
Em muitos países — e o Brasil é um deles — a AIA foi pioneira na institucionalização de procedimentos formais de consulta e participação, como as audiências públicas. Nos EUA, a National Environmental Policy Act obrigou os agentes governamentais a informar e ouvir o público — segundo regras detalhadas — antes que as decisões sejam tomadas. Na atualidade, a consulta pública realizada em diversos momentos do processo de AIA é uma boa prática internacionalmente recomendada.
A convocação, a organização e o andamento de uma audiência pública devem ter regras definidas de antemão, e de conhecimento de todos os participantes. No Brasil, as audiências públicas ambientais têm regulamentação mínima. Há regras sobre as condições em que devem ser convocadas, porém poucas regras de procedimento ou de conteúdo. A convocação está regulamentada pela Resolução Conama 9, de 3 de dezembro de 1987, segundo a qual deve ser realizada pelo menos uma audiência quando:
o órgão ambiental encarregado do licenciamento assim o decidir;
houver uma solicitação de uma entidade civil;
houver uma solicitação da parte do Ministério Público;
for solicitada por pelo menos cinquenta cidadãos.
No Estado de São Paulo, por força da Deliberação Consema no 34/2001, para todos os projetos que necessitem de estudo de impacto ambiental pelo menos uma audiência pública deve ser realizada. É um reconhecimento de que se os impactos potenciais foram considerados significativos na etapa de triagem, a audiência pública é importante e não pode deixar de ser realizada. Antes dessa deliberação, nem todo projeto sujeito a um EIA era debatido em audiência pública.
Quanto ao desenrolar de uma audiência pública, o Quadro 16.2 mostra de maneira resumida o procedimento adotado no Estado de São Paulo. A convocação e a organização de uma audiência pública é feita pela Secretaria Executiva do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema), colegiado integrante da Secretaria do Meio Ambiente. A realização da audiência deve ser divulgada por meio de jornais e outros meios de comunicação locais (por exemplo, radiodifusão e carros de som); o EIA e o Rima (ou o RAP) devem estar à disposição do público por um período mínimo de quinze dias, em algum local de fácil acesso. Durante o período de consulta, os Rimas e os EIAs são mantidos à disposição também na internet. As audiências são marcadas para o período da noite, para facilitar a participação do maior número de pessoas, e podem durar várias horas. Pode ser realizada mais de uma audiência para debater o mesmo projeto, mas cada uma não se prolonga para mais de um dia.
Além de manifestar-se verbalmente, os participantes podem apresentar documentos ou requerimentos durante a audiência. Ademais, qualquer interessado, mesmo que não tenha participado da audiência pública, pode também enviar à Secretaria do Meio Ambiente documentos ou petições relativas ao projeto em questão. Para cada audiência, a Secretaria Executiva do Consema prepara uma ata contendo a síntese das intervenções dos participantes e a relação dos documentos entregues durante a audiência. Normalmente, os debates e as apresentações são também gravados.
Quadro 16.2 Regras para Condução de Audiências Públicas no Estado de São Paulo
ORGANIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA |
AGENTE |
1ª parte: abertura |
Secretário do Meio Ambiente (saudação inicial) Coordenador da Secretaria do Meio Ambiente (esclarecimentos sobre o processo) |
2ª parte: exposições sobre o projeto em discussão |
Empreendedor – quinze minutos Equipe responsável pela elaboração do estudo ambiental – trinta minutos |
3ª parte: manifestação de entidades ambientalistas |
Trinta minutos |
4ª parte: manifestação de entidades da sociedade civil |
Cinco minutos para cada um |
5ª parte: manifestação de pessoas em particular |
Três minutos para cada um |
6ª parte: manifestação de representantes de órgãos públicos |
Cinco minutos para cada um |
7ª parte: manifestação dos membros do Consema |
Cinco minutos para cada um |
8ª parte: manifestação dos parlamentares |
Cinco minutos para cada um |
9ª parte: manifestação de prefeitos, secretários municipais e estaduais |
Cinco minutos para cada um |
10ª parte: respostas e comentários |
Equipe responsável pela elaboração do estudo ambiental – quinze minutos Conselheiro do Consema – dez minutos Empreendedor – cinco minutos |
11ª parte: encerramento |
Secretário do Meio Ambiente |
Fonte: Deliberação Consema nº 34, de 27 de novembro de 2001.
Uma audiência pública nunca é decisória. Nada se vota nem se resolve, uma vez que a decisão cabe ao órgão licenciador. No entanto, os debates e questionamentos ocorridos podem influenciar a decisão, até naquilo que se refere à mitigação ou compensação de impactos adversos, assim como acerca de compromissos que possam ser publicamente assumidos pelo empreendedor, mesmo que não venham a constar das condições da licença ambiental.
Outro exemplo de procedimento para o andamento de audiências públicas ambientais é mostrado no Quadro 16.3, que resume os procedimentos empregados no Quebec. Nessa província, há uma entidade independente criada por lei, o Escritório de Audiências Públicas Ambientais (Bureau d´Audiences Publiques sur l´Environnement — Bape), composto de comissários nomeados pelo ministro7 do Meio Ambiente, que têm como única função a de promover consultas públicas. Os comissários são apontados por períodos de seis anos e inamovíveis durante seus mandatos.
Depois de concluído o estudo de impacto ambiental e considerado adequado pelos serviços técnicos da Diretoria de Avaliações Ambientais, o mesmo é colocado à disposição do público durante 45 dias. Nesse período, qualquer cidadão, associação ou prefeitura pode solicitar a realização de uma audiência pública. Compete ao Ministro aceitar o pedido e determinar ao Bape que realize a audiência. No Brasil, a audiência pública é também realizada depois da conclusão do EIA, porém antes que se termine sua análise por parte do órgão licenciador. A diferença entre o procedimento brasileiro e o canadense deve-se à competência para tomar decisões de autorização, que, no caso quebequense, é do Conselho de Ministros, ao passo que, no Brasil, a decisão cabe à autoridade ambiental. No Quebec, a Diretoria de Avaliações Ambientais do Ministério gerencia todo o processo de AIA, desde a triagem até a análise técnica, e pode não aceitar um EIA em razão de deficiências que prejudiquem a boa avaliação do projeto proposto. Todavia, uma vez que o EIA seja considerado satisfatório (ou seja, descreveu e analisou adequadamente as consequências do projeto, mesmo que haja impactos adversos significativos), a decisão passa a uma instância superior. Nenhuma dessas duas filosofias pode ser julgada como superior, pois sua prática depende das condições objetivas de cada jurisdição. Esta questão será aprofundada no Cap. 17.
Quadro 16.3 Regras para condução de audiências públicas no Quebec, Canadá
ETAPA DO PROCESSO DE CONSULTA |
1. Um cidadão ou uma associação requer ao ministro do Meio Ambiente a realização de uma audiência pública para discutir um projeto. |
2. Se o pedido é aceito, o presidente do Escritório de Audiências Públicas Ambientais (Bape) nomeia uma comissão de consulta e seu responsável. |
3. A realização da audiência é publicada nos jornais e na internet. |
4. A comissão de consulta realiza reuniões preparatórias com o proponente do projeto e com o requerente da audiência. |
5. Realização da primeira parte da audiência com a seguinte sequência: |
- explicações preliminares (comissão de consulta); |
- explanação do requerente sobre os motivos da solicitação de audiência; |
- apresentação do proponente do projeto, principalmente sobre o EIA; |
- depoimentos de outras pessoas; |
- questões colocadas pelo público. |
6. Encaminhamento de documentos, pareceres ou relatórios dos interessados (até prefeituras). |
7. Realização da segunda parte da audiência, com a seguinte sequência: |
- alocução dos representantes de entidades ou cidadãos que apresentaram previamente |
documentos ou pareceres ou que desejem se exprimir verbalmente; |
- a comissão de consulta pode ouvir ou dirigir perguntas ao proponente do projeto, ao requerente da audiência pública ou a qualquer outra pessoa. |
8. Preparação do relatório final da comissão de consulta. |
9. Publicação e divulgação do relatório final. |
Fonte: Règles de Procédure Relatives au Déroulement des Audiences Publiques, Q-2, r. 19.
O Bape dispõe de quatro meses para realizar a audiência e preparar seu relatório. As audiências desenrolam-se em duas partes, com intervalo de 21 dias. Cada parte pode durar vários dias, consecutivos ou não (a duração usual é de três a cinco dias). A primeira parte da audiência tem função informativa. Nela, o proponente apresenta o projeto, suas justificativas e seus principais impactos, assim como as medidas mitigadoras propostas. O público pode fazer perguntas sobre o projeto, suas alternativas, os estudos realizados, mas a formulação de críticas e opiniões deve ser deixada para a segunda parte da audiência, e os comissários têm poder de cortar a palavra dos participantes durante a audiência. Os comissários também questionam o empreendedor e seu consultor e podem convocar representantes de órgãos públicos para prestar esclarecimentos. A sequência de apresentações e de perguntas, os tempos e a própria disposição dos participantes na sala seguem uma ordem precisa.
Pareceres, opiniões ou quaisquer outros documentos podem ser encaminhados ao Bape antes da segunda parte da audiência, quando se estabelece um debate sobre o projeto, suas justificativas, alternativas, seus impactos diretos e indiretos, sempre mediado pela comissão, que também nessa parte tem um papel ativo ao dirigir perguntas não somente ao proponente, mas também aos participantes da audiência. Segundo o próprio Bape, a divisão da audiência em duas partes é “o que torna original o procedimento, que assegura a exatidão e a integralidade da informação, e que permite a despolarização do debate” (Bape, 1994, p. 11).
Terminada a segunda parte, os comissários preparam um relatório dirigido ao Ministro que em seguida é impresso e publicado. Todo o acervo de relatórios de consulta e audiência pública do Bape está disponível na internet. O Quadro 16.4 mostra dois exemplos do sumário desses relatórios. O Bape não tem nenhum poder de decisão, mas cumpre uma função de promover ativamente uma consulta pública. Todos seus relatórios são tornados públicos, assim como os documentos apresentados durante a audiência. Muitas vezes há uma duplicação entre o trabalho de análise técnica do EIA realizado pela Direção de Avaliações Ambientais do Ministério do Meio Ambiente e o conteúdo dos relatórios do Bape, mas a independência dos comissários é um fator de credibilidade muito prezado pela sociedade local.
Quadro 16.4 Exemplo de estrutura de um relatório de consulta e audiência pública no Quebec
PROJETO DE INDÚSTRIA DE ALUMÍNIO PRIMÁRIO (2011) |
PROJETO DE UM PARQUE EÓLICO (2010) |
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Introdução |
1 pg. |
Introdução |
2 pgs. |
1. O projeto e seu contexto |
11 pgs. |
1. O projeto |
5 pgs. |
2. As preocupações e as opiniões dos participantes |
8 pgs. |
2. As preocupações e as opiniões dos participantes |
3 pgs. |
3. As repercussões sobre o meio biofísico |
26 pgs. |
3. Os impactos do projeto |
24 pgs. |
4. As repercussões sobre o meio social |
23 pgs. |
4. Conclusão |
2 pgs |
5. As consequências econômicas |
3 pg. |
Anexos |
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Conclusão |
2 pg. |
Bibliografia |
|
Anexos |
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Bibliografia |
Digno de nota é o mecanismo existente na legislação federal canadense, e também em algumas províncias, de auxílio financeiro para que os interessados participem do processo de consulta pública. À semelhança do procedimento do Quebec, no processo federal as audiências também são longas e dirigidas por uma comissão com poderes de requisitar documentos e depoimentos. A participação do cidadão comum não é muito simples, e para reduzir as dificuldades de acesso e decodificação de informação técnica há fundos disponíveis, em montantes limitados, que cidadãos, associações locais e outras entidades podem pleitear, mediante justificativa, para contratar assessoria técnica que facilite seu entendimento e análise dos estudos e documentos apresentados. Esses recursos também podem ser empregados para produzir documentos, adquirir certos materiais informativos e cobrir despesas de viagem, entre outros.
Já um modelo oposto de consulta pública é adotado na Austrália, aqui exemplificado pelo procedimento estabelecido pela legislação do Estado da Austrália Ocidental. Não há consulta pública, mas a obrigatoriedade, para o empreendedor, de realizar sua própria consulta e de documentar todas as atividades realizadas – tais como listas de presença em reuniões abertas, convocatórias ou convites etc. – e relatar o processo e suas conclusões no EIA. O órgão ambiental – a Autoridade de Proteção Ambiental (EPA) – tem apenas duas funções de consulta pública: (1) verificar os documentos apresentados pelo empreendedor como parte de sua tarefa de análise técnica do EIA e (2) realizar uma consulta, somente pela internet, em determinados momentos do processo de AIA: triagem, determinação do escopo e análise do EIA. Na etapa de análise, um período de consulta pública é anunciado, uma cópia eletrônica do EIA fica disponível por um período predeterminado (e cópias físicas podem ser solicitadas pelo correio, a um preço limitado a 10 dólares) e os interessados podem enviar seus comentários em um formulário próprio, com espaço limitado, através do site da EPA.
As Figs. 16.5 e 16.6 ilustram uma reunião pública aberta promovida para discutir um projeto de construção de uma via expressa urbana na cidade de Perth. Uma reunião marcada durante um dia inteiro em um fim de semana, em espaço próximo ao local do projeto, comporta exibição de vídeos, de documentos de projeto (desenhos, ilustrações, fotos) e a presença de uma equipe de técnicos da empresa de consultoria e de representantes do empreendedor para conversar com o público interessado. Oponentes podem comparecer, distribuir material e também conversar com o público.
O registro, no EIA, dos resultados da consulta pública, com uma síntese dos pontos levantados e a indicação de como são tratados no EIA, é uma exigência. O Quadro 16.5 mostra, a título de exemplo, como o EIA de um projeto de expansão de uma mina de ferro em uma região ao Norte do Estado (Pilbara) sintetiza a consulta pública.
Fig. 16.5 Técnica (esq.) conversa com cidadã durante uma sessão de consulta pública na Austrália, que envolveu um levantamento da opinião sobre as questões mais relevantes relacionadas ao projeto. No registro da foto, as questões de “ambiente” sobrepujavam as demais
Os exemplos do Quebec e da Austrália ilustram abordagens muito distintas para a consulta pública. Há ainda outros formatos em uso em outras partes do mundo. Possivelmente, a consulta pública seja a etapa do processo de AIA na qual haja menos convergência internacional.
Fig. 16.6 Opositores ao projeto da Fig. 16.5 conversam com cidadãos durante sessão de consulta pública
Quadro 16.5 Extrato de um quadro-síntese sobre questões levantadas durante a consulta pública do projeto de expansão de uma mina de ferro e seu tratamento no EIA
PARTE INTERESSADA |
QUESTÕES LEVANTADAS |
RESPOSTA DO PROPONENTE |
Organizações não governamentais |
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Os impactos do bombeamento de água da cava precisam levar em conta eventos climáticos extremos, como secas, para avaliar os impactos no Parque Nacional Karijini |
Os impactos combinados do bombeamento de água da cava e eventos climáticos extremos, como secas, são tratados na Seção 5.5 |
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Conselho de Conservação da Austrália Ocidental |
Consideração dos crescentes custos de combustível e da taxa de carbono sobre os custos de fechamento |
Os custos de fechamento são revistos anualmente, e o plano de fechamento é atualizado a cada cinco anos. Quaisquer mudanças significativas nos custos de fechamento (…) serão levadas em conta nas revisões, para garantir que o cálculo da provisão financeira seja acurado (Seção 5.10) |
Comunidade |
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Povo Guruma oriental |
Oportunidades de emprego |
As empresas aborígenes terão oportunidade de participar de licitações |
Proteção de sítios históricos |
A proteção dos sítios patrimoniais aborígenes identificados é tratada na Seção 5.8 |
Fonte: Rio Tinto. Public Environmental Review, Marandoo Mine Phase 2. 1 volume + anexos, 2008.
A consulta pública pode ser feita não somente por meio dos canais oficiais, vinculada ao processo de AIA e ao licenciamento ambiental, mas também por iniciativa voluntária de uma empresa, com o intuito de melhorar seu relacionamento com a comunidade ou de conhecer quais são suas preocupações, valores e perspectivas. Durante o planejamento de um novo projeto, uma interação precoce com a comunidade local e com grupos de interesse, como organizações não governamentais, pode facilitar sua futura aprovação. É certamente por interesse próprio (assim como para honrar eventuais compromissos de responsabilidade social) que uma empresa que atue em setores de significativo impacto ambiental deveria se envolver ativamente em consulta pública independentemente de qualquer exigência legal:
A experiência é um grande professor. Recentemente, as companhias mais avançadas (…) adotaram um processo [de participação pública] genuinamente positivo, aberto, cooperativo e interativo. Elas estão prontas para começar cedo, para escutar tanto quanto para informar. Elas aprenderam os benefícios de serem ouvintes atentas. (EPA, 1995b, p. 4)
Pragmatismo e eficiência são ilustrados por Millison e Hettige (2005, p. 40) que, ao analisarem retrospectivamente projetos financiados pelo Banco Asiático de Desenvolvimento, observam que “o processo de consulta [pública] não foi muito eficaz (…) [e] resultou em identificação imprópria de impactos, surgimento de expectativas irrealistas entre as pessoas afetadas e medidas mitigadoras inadequadas”.
As corporações apoiariam e promoveriam voluntariamente a consulta pública por razões meramente funcionais, usando a conceituação de Webler e Renn (1995), ou seja, porque a consulta “produz resultados”. Tal atitude só pode contribuir para estabelecer boas relações com os futuros vizinhos, no caso de um novo empreendimento, ou para melhorar as relações com os atuais vizinhos, sem que possa haver, contudo, uma garantia de aceitação do projeto. Dentre os possíveis benefícios do envolvimento público antes mesmo da preparação do estudo de impacto ambiental, enumeram-se:
melhor entendimento mútuo;
melhor compreensão das características e dos impactos do projeto;
melhor compreensão dos pontos de vista do público;
contribuição para um ambiente de respeito pelos valores da comunidade;
livre expressão e manifestação de apreensões, dúvidas e necessidades;
identificação de questões que causem preocupação.
Os empreendedores privados e governamentais têm, basicamente, dois caminhos para se relacionar com o público quando preparam um novo projeto. O caminho tradicional é, às vezes, descrito como o “modelo DAD”, ou seja, “decida, anuncie, defenda”. Os limites dessa abordagem são bem conhecidos e já foram explorados neste capítulo. As únicas ações de participação pública são aquelas obrigatórias. O modelo alternativo é o de engajamento com as partes interessadas, também conhecido como EDD, de “engaje, delibere, decida”, que possibilita evitar conflitos e chegar a soluções mutuamente aceitáveis, porém deve ser iniciado cedo, pois pode consumir bastante tempo e tem custo razoavelmente conhecido. Já o custo do modelo DAD é desconhecido: o empreendedor pode “passar” facilmente pelo crivo administrativo e público, mas também pode falhar na obtenção da licença social, sendo “barrado” por uma oposição organizada ao seu projeto, adiando seu início ou mesmo o inviabilizando.
É interessante observar que mesmo em uma jurisdição onde a consulta pública oficial é extremamente desenvolvida – o Quebec –, os próprios termos de referência dos estudos de impacto ambiental determinam que o proponente de um projeto deve promover a participação pública antes da conclusão de seu EIA, procurando conhecer os pontos de vista do público e oferecer soluções aceitáveis aos cidadãos. Desse modo, espera-se que questões de âmbito local possam ser resolvidas diretamente entre as partes, sem recurso ao processo oficial, que é custoso – cada processo completo de consulta e audiência pública custa, em média, 250 mil dólares canadenses.
Os tomadores de empréstimo do Banco Mundial e dos bancos signatários dos Princípios do Equador também devem cumprir etapas apropriadas de consulta pública e documentá-las. O Padrão de Desempenho 1 – Avaliação e Gestão de Riscos e Impactos Socioambientais requer que os clientes executem as seguintes tarefas:
análise das partes interessadas e planejamento de seu engajamento: identificar as partes interessadas, incluindo as comunidades afetadas, e aplicar um plano de engajamento que seja proporcional aos riscos e impactos do projeto, podendo adotar medidas diferenciadas para facilitar a participação efetiva de grupos vulneráveis ou em desvantagem;
divulgação e disseminação de informação: prover informação sobre o projeto, seus potenciais impactos para as comunidades e medidas de mitigação relevantes;
consulta: “proporcionar às comunidades afetadas a oportunidade de expressar seus pontos de vista sobre os riscos, os impactos e as medidas de mitigação do projeto e permitir ao cliente analisá-los e responder a eles” (parágrafo 30).
Este padrão da IFC requer uma ação afirmativa para tratar desigualmente os desiguais, ou seja, aqueles desfavorecidos social ou economicamente, o que geralmente não é previsto pelos processos governamentais de participação, que pressupõem igualdade de todos. No caso de comunidades indígenas, há requisitos adicionais no Padrão de Desempenho 7 – Povos Indígenas.
Pode ser necessário um esforço vigoroso para conseguir a aceitação pública de um novo projeto, mas não há garantias de que isso será conseguido em todos os casos. Em um período de dois anos que precedeu a aprovação da primeira mina canadense de diamantes, situada no norte do país, em uma região pouco povoada, mas inserida em território tradicional de comunidades indígenas (denominadas, no Canadá, de “Primeiras Nações”, isto é, aquelas que precederam a chegada dos colonizadores europeus), a equipe do proponente (uma grande empresa australiana com operações em muitos países) realizou cerca de trezentas reuniões com mais de cinquenta diferentes grupos de interesse (Azinger, 1998). Naturalmente, não foram meras reuniões de informação, mas encontros de discussão e negociação, que resultaram em compromissos assumidos pela empresa, como a contratação preferencial de pessoal da região.
Nos processos voluntários de consulta é importante tratar de identificar quais são os potenciais grupos de interesse, em vez de esperar que eles “apareçam”. No caso de um projeto de uma nova mina de areia industrial (para fabricação de vidro) no interior de São Paulo, as equipes envolvidas no EIA e na preparação do projeto limitaram-se a esperar os procedimentos oficiais de consulta pública e terminaram por “descobrir” que o proprietário de um imóvel rural vizinho era um militante ambientalista bastante ativo e hábil orador em audiências e reuniões públicas. O projeto acabou sendo aprovado, mas não na configuração desejada pela empresa.
Além da identificação das partes interessadas, pode ser conveniente fazer o mapeamento, que inclui uma interpretação do grau de interesse e do grau de influência de cada grupo (stakeholders). O mapeamento de stakeholders procura identificar os vários grupos potencialmente interessados ou potencialmente afetados pelo projeto, identificando também seus interesses e avaliando seu possível grau de influência sobre as decisões de projeto. O perfil de cada grupo interessado inclui uma descrição de seu interesse relativo ao projeto, seu grau de influência e sua importância para o empreendedor. Ações de comunicação podem, então, ser planejadas levando em conta o perfil de cada grupo, em vez de promover uma comunicação “genérica” voltada a qualquer interessado.
Em alguns casos, as partes interessadas podem ser comunidades situadas a grandes distâncias. No exemplo da mina canadense de diamantes (Azinger, 1998), grupos nativos localizados a 550 km foram incluídos na consulta, pois caçavam caribus, cujas manadas, migratórias, utilizavam a área do projeto. Uma das principais recomendações de guias e manuais de consulta pública é “ser inclusivo”, não deixando de fora nenhum grupo ou indivíduo que declare ter interesse. World Bank (1999, p. 6) enfatiza que a identificação de grupos de interessados é “elemento crítico” do processo de consulta, e sugere que se busque identificar: (i) aqueles que serão diretamente afetados; (ii) aqueles que serão indiretamente afetados; (iii) aqueles que tenham um interesse; e (iv) aqueles que sintam que poderão ser afetados.
A divulgação pública do projeto auxilia na identificação dos grupos de interesse. Muitas vezes, há pouca participação por falta de informação (o primeiro pilar da Convenção de Aarhus), e somente tarde demais os cidadãos descobrem que serão afetados. Por exemplo, a construção da linha 4 do metrô de São Paulo levou ao fechamento de algumas ruas e ao isolamento permanente de alguns quarteirões, causando um aumento nos tempos de viagem (para automóveis, ônibus, ciclistas e pedestres) para deslocamentos transversais próximos a uma extremidade da linha. Quando comerciantes e moradores descobriram o fato e perceberam que seriam prejudicados, mobilizaram-se para tentar manter aberta uma rua, mas era tarde demais para modificar o projeto, mesmo com pressão política de vereadores.
Nesse caso, o descontentamento popular não teve nenhuma influência sobre o projeto, mas em outros pode levar a questionamentos por via judicial e a atrasos na implantação. World Bank (1999) recorda que a inadequada identificação de interessados pode representar custos adicionais para o projeto e também levar informação incompleta ou incorreta a circular publicamente, criando um clima de hostilidade à proposta. O mapeamento de partes interessadas envolve a identificação de cada uma delas (uma entidade, como associação de moradores e seu representante, ou indivíduos), um entendimento de seus interesses em relação ao projeto, uma apreciação de seu grau de informação sobre o projeto e uma avaliação de seu grau de influência. Podem ser influentes entidades ou indivíduos que sejam lideranças locais, que tenham destaque político ou que sejam formadores de opinião, entre outros. Para realizar um bom mapeamento de partes interessadas pode ser necessário realizar entrevistas, caso em que necessariamente devem ser apresentadas informações sobre o projeto.
O mapeamento das partes interessadas pode ter como produto a formulação de estratégias ou de ações de comunicação. A Fig. 16.7 indica uma forma usual de representar stakeholders, combinando a interpretação de seu interesse com sua possível influência sobre as decisões atinentes ao projeto. Cada um é colocado em determinada posição. Assim, os esforços de consulta e comunicação poderão ser concentrados sobre o grupo dos atores-chave. As formas de consulta poderão ser diferentes para grupos distintos, assim como o tipo e o conteúdo da informação.
Os meios de divulgação (material escrito, visual, exposições orais, conversas frente a frente etc.) deverão ser escolhidos de acordo com as características de cada grupo de interessados. Claramente, a maneira de abordar populações tradicionais não pode ser a mesma usada para comunicação com uma ONG ambientalista de atuação internacional, por exemplo.
A riqueza do processo está nos intercâmbios que se possam estabelecer e no entendimento mútuo que se possa construir – desde que o proponente do projeto esteja aberto ao diálogo. Caso contrário, em vez de assessoria técnica, deve contratar uma agência de publicidade e se engajar em uma estratégia de manipulação ou persuasão (Figs. 16.2 e 16.3).
Fig. 16.7 Diagrama de mapeamento de partes interessadas
Depois da disseminação de informação sobre o projeto e de um primeiro mapeamento dos pontos de vista, expectativas, demandas e objeções dos interessados, é preciso organizar as discussões em torno de alguns pontos-chave. Por exemplo: há questões a serem elucidadas no EIA? Há demandas específicas que possam ser atendidas? Há alternativas que devam ser exploradas? Esta última questão pode ser ilustrada por uma demanda frequente em projetos industriais, a de reduzir os incômodos causados pelo tráfego de veículos induzido pelo empreendimento, particularmente caminhões. Ao identificar previamente tal demanda, a empresa pode explorar vias de acesso alternativas antes de incorrer em custos de construção e mais tarde precisar fazer modificações, invariavelmente mais caras.
Intercâmbio e diálogo formam o caldo de cultura necessário para que avance a consulta pública. Para que apareçam frutos, é necessário vencer resistências (até mesmo internas à empresa ou organização que promove a consulta voluntária) e forjar um clima de confiança, o que sempre leva tempo. Ainda que as discussões possam ampliar o horizonte inicial do proponente, é importante não perder de vista o objetivo do trabalho, organizando as atividades e mantendo um registro dos avanços. Planilhas, diagramas e versões sucessivamente atualizadas de pontos de acordo são algumas ferramentas que ajudam a não perder objetividade durante o processo de consulta e negociação.
Uma vez que se tenha chegado a consensos, todos têm a ganhar se compromissos escritos, como memorandos de entendimento, forem firmados, pelo menos entre algumas das partes envolvidas. O passo seguinte será implementar as decisões e monitorar seus resultados. Não é raro que grupos ou indivíduos inicialmente muito interessados desapareçam de súbito, ou que novos grupos ou indivíduos venham se juntar ou apareçam no decorrer ou no final do processo de consulta. Não se trata de fechar a porta nem de recomeçar a cada mudança, mas de manter alguma referência que possibilite o engajamento de novos interessados sem frear o avanço da consulta e das negociações.
Mesmo depois de aprovado o projeto, é recomendável manter um centro de informação durante todo o período de construção, no qual se possa receber reclamações, sanar dúvidas e veicular informações sobre o projeto. Idealmente, esse centro deveria ter, pelo menos, uma pessoa permanente, suficiente e adequadamente informada e conhecedora do projeto. O centro deve ser instalado em um local visível e de fácil acesso, localizado fora do canteiro de obras ou de áreas industriais ou operacionais. Naturalmente, ele pode ser complementado por um centro virtual (internet), cuja função não é substituir o centro físico.
Quadro 16.6 Principais tarefas em uma consulta pública voluntária
ETAPA DO PROCESSO DE CONSULTA |
1. Definir os objetivos de consulta pública. |
2. Identificar as partes interessadas. |
3. Preparação de material para divulgação e disseminação de |
informação. |
4. Intercâmbio e diálogo. |
5. Estabelecimento de compromissos. |
6. Estabelecimento e manutenção de um canal de comunicação |
durante todas as etapas do ciclo de vida do empreendimento. |
Fontes: adaptado de Azinger (1998), EPA (1995) e World Bank (1995, 1999).
Resumindo, tanto empresas privadas como empreendedores públicos têm a ganhar ao promoverem uma consulta pública relativa a projetos que possam causar impactos ambientais. O Quadro 16.6 condensa as principais etapas usualmente recomendadas, mas não há uma receita que possa garantir resultados. Nunca é demais lembrar que o emprego de profissionais capacitados é uma das chaves do sucesso, que tampouco pode prescindir de um engajamento genuíno da alta direção da empresa ou do organismo promotor. Esse engajamento é tanto mais necessário quanto mais o tema de abertura para o público seja novidade na organização. Serão invitáveis os conflitos com profissionais técnicos, particularmente engenheiros, poucas vezes dispostos a explicar a leigos as razões que fundamentam as soluções técnicas adotadas, e ainda menos preparados para ouvir questionamentos que podem colocar em cheque os próprios paradigmas de seu trabalho. Mas esse é um risco de toda consulta pública.
Os termos “consulta livre, prévia e informada” e “consentimento livre, prévio e informado” são usados com relação à participação pública de povos indígenas. O “consentimento” é requerido nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, sendo também mencionado em diferentes artigos da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Tribais (adotada pela Assembleia Geral em setembro de 2007).
O artigo 6º da Convenção requer que a consulta seja “de boa fé”, conduzida mediante “procedimentos apropriados” e por meio das “instituições representativas” dos povos indígenas. O artigo 7º é explícito quanto ao direito desses povos em “decidir suas próprias prioridades quanto ao processo de desenvolvimento, na medida em que estes afetem suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual e as terras que ocupem”. O mesmo artigo atribui aos governos a obrigação de velar para que sejam realizados estudos “a fim de avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente” que atividades de desenvolvimento possam vir a causar, e que os resultados desses estudos sejam considerados nas decisões. O primeiro país a aderir à Convenção foi a Noruega, em junho de 1990. Vários países latino-americanos são signatários; o Brasil aderiu em julho de 2002. Cada país desenvolve procedimentos próprios para realizar a consulta.
O Padrão de Desempenho 7 – Povos Indígenas, da IFC, requer que a consulta se dê de maneira “culturalmente apropriada” e com tempo suficiente para atingir uma “conclusão legítima para a maioria dos participantes” (parágrafo 10). O consentimento prévio é necessário quando: (1) houver impactos sobre a terra e os recursos naturais comuns; (2) houver necessidade de relocação; (3) afetar patrimônio cultural crítico.
Entretanto, há vários problemas práticos para implementar algum mecanismo de consentimento livre, prévio e informado, como os apresentados por Esteves et al. (2012): (i) definir quem tem direito de consentir e quem representa as comunidades afetadas; (ii) decidir quem tem legitimidade como provedor de informação; (iii) o direito ou a capacidade das comunidades de retirar um consentimento já dado. No caso da barragem de Belo Monte, questionamentos acerca da adequação da consulta, nos termos da Convenção OIT 169, foram levados à Justiça pelo Ministério Público e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e à própria OIT por ONGs. O relatório de um comitê de especialistas nomeado pela OIT observou que, apesar de todas as consultas e reuniões realizadas,
segundo a documentação e a informação apresentada pelo Governo, os procedimentos adotados até o momento, apesar de terem sido amplos, não reúnem os requisitos estabelecidos nos artigos 6 e 15 da Convenção (…) e tampouco demonstram que se tenha permitido aos povos indígenas participar de maneira efetiva na determinação de suas prioridades, em conformidade com o artigo 7 da Convenção.
Brasil. Aplicación del Convenio 169. Informe OIT CEARC 2012.
No Brasil, as reuniões de consulta são chamadas de oitivas, mas seus procedimentos não foram regulamentados. O artigo 6º da Convenção requer a consulta sempre que houver medidas legislativas ou administrativas que possam afetar os povos indígenas e tribais (caso do licenciamento de projetos em terras indígenas, para os quais é necessário uma autorização do Congresso).
Alguns países já dispõem de procedimentos de consulta a povos indígenas em seus sistemas de AIA, como o Canadá. Um exemplo nesse país são os acordos para avaliação de projetos no norte do Quebec, firmados em novembro de 1975 entre os governos federal e provincial e duas nações indígenas, os Cri e os Inuit. Os termos desses acordos incluem a decisão partilhada sobre projetos de significativo impacto ambiental. Ambas as nações indígenas têm suas próprias equipes técnicas de análise de estudos de impacto ambiental e de acompanhamento de empreendimentos em seus territórios.
1Sua denominação oficial é Convenção sobre o Acesso à Informação Ambiental, a Participação do Público na Tomada de Decisões e o Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais.
2O assunto será retomado, sob outra perspectiva, na seção 17.3.
3O primeiro registro de uma audiência pública data do ano de 1403, em Londres (Webler e Renn, 1990, p. 24).
4Trata-se, aqui, de audiências públicas que ocorrem no fim do processo, quando o EIA já está concluído. Como indicado no Cap. 6, também podem ser realizadas audiências antes da preparação do EIA, com o intuito de contribuir para a identificação das questões relevantes.
5O Cap. 14 apontou algumas questões ligadas à comunicação no processo de AIA. Dentre as deficiências, nota-se que raramente o Rima tem valorizada sua função de comunicação com o público.
6Há muitas fontes sobre métodos de planejamento participativo. World Bank (1995) traz uma síntese.
7Cargo equivalente ao de secretário de Meio Ambiente para um Estado brasileiro.